Solucionando Situação-Problema
Construindo a solução de situação-problema, em contexto colaborativo, de autonomia, por meio da Metodologia de Atendimento Sistêmico ¹
Maria José Esteves de Vasconcellos ²
Profissionais de diferentes áreas, especialmente aqueles que Aun (2007/1998) chamou de “profissionais que lidam com as relações humanas” – médicos, professores, assistentes sociais, orientadores educacionais, psicólogos, consultores empresariais (em gestão, economia, finanças), economistas domésticos, terapeutas ocupacionais e tantos outros -, têm sido tradicionalmente procurados por pessoas, instituições, empresas que estão vivenciando uma situação-problema, uma situação que elas acham que não está como deveria estar ou como se gostaria que estivesse.
Conforme nossa organização social, esses profissionais têm sido considerados, cada um em sua área de atuação, como “experts em soluções”. A visão de mundo tradicional nos levou a acreditar que cada um desses profissionais tem um acesso privilegiado a uma fatia da realidade, ou que detém um conhecimento especial, conforme a área ou disciplina científica em que concentrou seus estudos ou sua formação. Por isso, costumamos ouvir comentários do tipo: “Nesse caso, a última palavra vai ser do Dr. Fulano” ou “Vamos esperar pela orientação do Dr. Fulano, porque isso é da área dele”. As pessoas procuram diferentes “autoridades” ou diferentes “especialistas” para diferentes situações-problema.
Segundo Aun (2010/1998), espera-se que esses profissionais sejam capazes de produzir mudanças nessas situações-problema. Pode-se perceber que essa expectativa está fundamentada em um pressuposto da ciência tradicional, que é a crença de que o profissional especialista detém um poder de mudança do “sistema” com que ele trabalha, sendo essa capacidade o que o caracteriza como um bom profissional.
Esse profissional especialista intervém ou usa esse seu poder para que, agindo sobre o “sistema” – informando, convencendo, conscientizando, prescrevendo, ensinando, treinando, resolvendo conflitos, orientando, dirigindo – aconteçam as mudanças necessárias ou desejadas pelos clientes (ou usuários dos serviços que presta). Quando, por um lado, tem como meta que seu cliente/usuário desenvolva autonomia, que faça suas próprias escolhas e, por outro lado, mantém-se acreditando que tem em suas mãos de especialista o poder de “conseguir’ determinado tipo de mudança e que é responsabilidade sua fazer escolhas adequadas para consegui-lo, esse profissional se vê colhido por uma situação sem saída, uma situação paradoxal (Esteves de Vasconcellos, 2007), derivada de seus próprios pressupostos.
Como todo paradoxo, esse também captura tanto o emissor quanto o receptor das mensagens contraditórias, contidas na injunção “seja autônomo”. Para o cliente/usuário, a situação se configura assim: como agir por minha própria iniciativa (ser autônomo), se estou recebendo instrução sobre como agir, não podendo, portanto, ter iniciativa própria? Para o profissional, a situação sem saída é: como atuar, sendo competente e responsável por produzir a mudança do outro e de modo a conseguir que meu cliente/usuário assuma com autonomia a responsabilidade por sua própria mudança? Essa parece ser ainda hoje, a situação em que se encontram muitos dos profissionais institucionalmente (socialmente) encarregados de promover mudanças – ou de solucionar situações-problema – conforme suas respectivas especialidades.
Perspectiva de sair do paradoxo
Acontece que, a partir de 1960/70, cientistas/pesquisadores, trabalhando em seus laboratórios, em micro-física (Niels Bohr – a questão da contradição), em termodinâmica (Boltzman – a questão da desordem), em física quântica (Heisenberg – o princípio da incerteza), em físico- química (Prigogine – os saltos qualitativos do sistema), em biologia experimental (Maturana e Varela – objetividade entre parênteses), em física cibernética (von Foerster – sistemas observantes), em biofísica (Atlan – complexidade), se defrontaram com evidências que os levaram a questionar, entre outras, as noções da compartimentação do saber, do acesso a realidades objetivas, da possibilidade de instruções serem seguidas por sistemas humanos os quais, como sistemas vivos, foram reconhecidos como sistemas autônomos.
Tudo isso desencadeou mudanças de premissas dos cientistas, mudanças que estão constituindo um novo paradigma da ciência emergente, um paradigma sistêmico de 2ª. Ordem (Esteves de Vasconcellos, 1992, 2002). Os cientistas questionaram e reviram suas crenças tradicionais e assumiram os novos pressupostos: complexidade dos fenômenos, em todos os níveis da natureza; instabilidade do mundo, imprevisibilidade e incontrolabilidade dos fenômenos; impossibilidade da objetividade e inevitável coconstrução da “realidade” e de todo conhecimento sobre o mundo, em espaços consensuais de intersubjetividade.
Alguns daqueles profissionais tradicionais que já se sentiam desconfortáveis por estarem tomando decisões por seus clientes/usuários, ao tomarem conhecimento dessas evidências trazidas por pesquisadores e ao refletirem sobre elas, assumiram uma postura sistêmica de 2ª. Ordem (que tenho chamado de epistemologia sistêmica novo-paradigmática – Esteves de Vasconcellos, 2005/2004) e se sentiram aliviados com as perspectivas abertas por essa nova visão de mundo.
Esses profissionais perceberam claramente e acreditaram que “não existe a realidade independente de um observador” e que só se pode falar de realidade quando esta emerge de conversações, em espaços consensuais de intersubjetividade.
Entretanto, faltava-lhes algo fundamental e eles continuaram se perguntando: COMO atuar, na prática, de modo consistente com as novas crenças/pressupostos que assumiram? Continuaram em busca de uma metodologia para a ação.
O desenvolvimento da Metodologia de Atendimento Sistêmico
Trabalhando em clínica de tratamento de crianças com deficiências, a qual naturalmente visava o desenvolvimento da autonomia dessas crianças, minha colega Juliana Aun percebeu que as crianças recebiam “alta” não por terem desenvolvido autonomia e sim por terem atingido determinada idade e ficou “preocupada com esta questão, tentando encontrar uma resposta que superasse a dualidade do paradoxo criado pela pergunta ‘como conseguir que o outro seja
autônomo e responsável por sua mudança?’” (Aun, 2010/1998, p 97).
Considero que essa preocupação de Juliana encontra-se na raiz das práticas sistêmicas novo-paradigmáticas desenvolvidas pela EquipSIS – Equipe Sistêmica, em Belo Horizonte, como explicitei no texto “Uma narrativa sobre o desenvolvimento da nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico” (Esteves de Vasconcellos, 2010a).
Realizando uma prática em política social, desenvolvida no Departamento de Assistência à Pessoa com Deficiência da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, como pesquisa para sua dissertação de mestrado (Aun, 1996), ela abordou uma situação-problema relacionada à inclusão da pessoa com deficiência, de modo coerente com os novos pressupostos que constituem meu quadro de referência para a mudança de paradigma da ciência (Esteves de Vasconcellos, 1992, 2002). Criando um contexto de autonomia que envolveu todos os participantes do sistema amplo, coordenou conversações do sistema linguístico que se constituiu em torno da situação-problema, viabilizando o encaminhamento de soluções possíveis para aquela situação-problema.
Envolvendo-nos nessa proposta de desenvolvimento de uma metodologia sistêmica para solução de situação-problema, dedicamo-nos, na EquipSIS, durante todos os anos subseqüentes, a experimentar sucessivas vezes essa metodologia, aperfeiçoando-a gradativamente.
Essas sucessivas experiências têm evidenciado a possibilidade de se atingirem os objetivos a que a Metodologia se propõe, desde que aplicada por profissional que tenha assumido uma visão sistêmica de 2ª. Ordem. Já tem sido utilizada no encaminhamento de soluções para variadas situações-problema, como se pode constatar no texto “Uso da Metodologia de Atendimento Sistêmico em diferentes contextos de prática profissional” (Coelho, 2010), como,
por exemplo, os que, dentre outros, estão listados a seguir:
- Em cuidados ao portador de sofrimento mental;
- Na aplicação de medidas socioeducativas judicialmente determinadas;
- Na aplicação de programas de promoção social;
- Na abordagem de relações interpessoais em ambiente empresarial;
- Em UTI neonatal, nos cuidados a bebês em situação de risco;
- Em cuidados nutricionais de prevenção à obesidade;
- Em tratamento de doenças crônicas;
- Em programas de socialização de crianças, em comunidades carentes;
- Em situações de dificuldade de aprendizagem escolar;
- Em situações de acolhimento institucional, como garantia de direitos da criança e do adolescente;
- Na solução de conflitos interpessoais, evitando a sua judicialização;
- Em situações de reassentamento de pessoas/comunidades deslocadas por construção de usina hidrelétrica;
- Em reinserção familiar e social de dependentes químicos após período de internação;
- Em reinserção familiar e social de idosos após alta hospitalar;
- Em situações de violência doméstica…
Entre as muitas aplicações da Metodologia de Atendimento Sistêmico, destaca-se a que foi realizada pelo Ministério Público do Estado de Goiás, nas diversas Comarcas do Estado em que se desenvolveu o Programa Parceria Cidadã. Um vídeo, editado pelo MP GO em 2008, dá notícia da experiência em três dessas Comarcas, mostrando as conversações por meio das quais foram encaminhadas soluções para três diferentes situações-problema distinguidas pelas respectivas comunidades.
Esse vídeo pode ser acessado em https://www.youtube.com/watch?v=pIEzjbo46r8.
Mais recentemente, em 2016, o mesmo MP GO fez uma publicação, Mediação e Negociação de Conflitos Ambientais, apresentando, não só os resultados exitosos obtidos em 40 Comarcas do Estado de Goiás que aderiram ao Programa Ser Natureza, acompanhadas pela Coordenadoria de Apoio à Atuação Extrajudicial do MP GO, como também os depoimentos dos Promotores de Justiça das respectivas Comarcas sobre a experiência vivida com a aplicação da Metodologia.
A aplicabilidade da Metodologia de Atendimento Sistêmico nas políticas públicas de assistência social foi também recentemente avaliada em pesquisa, a qual verificou que a Metodologia pode atender aos princípios, objetivos e diretrizes do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), atendendo de modo especial aos objetivos fundamentais do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) (Mendonça, 2014).
Essa prática está teoricamente fundamentada na Teoria Geral dos Sistemas Autônomos, de Mateus Esteves de Vasconcellos, publicada em seu livro A Nova Teoria Geral dos Sistemas (2013) e resumidamente apresentada em seu artigo “Não ensine a pescar! Sobre a fundamentação teórica das práticas sistêmicas” (2014).
Portanto, hoje distingo nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico como uma importante contribuição da EquipSIS, que possibilita a realização de práticas de atendimento de sistemas amplos – nos mais variados contextos de prática –, de modo coerente ou consistente com o pensamento sistêmico novo-paradigmático (Esteves de Vasconcellos, 2010b; 2015), contribuição que está colocada à disposição de todos os interessados nos 3 volumes da nossa obra, Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais (Aun, Juliana Gontijo; Esteves de Vasconcellos, Maria José; Coelho, Sonia Vieira, 2005; 2007; 2010) .
REFERÊNCIAS
AUN, J.G, ESTEVES DE VASCONCELLOS, M. J.; COELHO, S.V. Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais. Belo Horizonte: Ophicina de Arte e Prosa, Vol 1, 2005; Vol 2, 2007; Vol 3, 2010.
AUN, J. G. O processo de co-construção como um contexto de autonomia: uma abordagem às políticas de assistência às pessoas portadoras de deficiência. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: Departamento de Psicologia da UFMG, 1996.
AUN, J. G. Uma nova identidade para o profissional que lida com as relações humanas. In: Aun, J.G, Esteves de Vasconcellos, M. J.; Coelho, S.V. Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais. Vol 2, Tomo I, Belo Horizonte: Ophicina de Arte e Prosa, 2007.
AUN, J. G. O processo de co-construção em um contexto de autonomia. In: Aun, J.G, Esteves de Vasconcellos, M. J.; Coelho, S.V. Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais. Vol 3. Belo Horizonte: Ophicina de Arte e Prosa, 2010.
COELHO, S. V. Uso da Metodologia de Atendimento Sistêmico em diferentes contextos de prática profissional. In: Aun, J.G, Esteves de Vasconcellos, M. J.; Coelho, S.V. Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais. Vol 3. Belo Horizonte: Ophicina de Arte e Prosa, 2010.
ESTEVES DE VASCONCELLOS, M. J. As bases cibernéticas da terapia familiar sistêmica. Contribuições à precisão do quadro conceitual. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: Departamento de Psicologia da UFMG, 1992.
ESTEVES DE VASCONCELLOS, M. J. Pensamento sistêmico. O novo paradigma da ciência. Campinas/Belo Horizonte: Papirus / Editora PUCMinas, 2002 (11ª. edição 2018). ESTEVES DE VASCONCELLOS, M. J. Pensamento sistêmico novo paradigmático: novo-paradigmático, por quê? In: Aun, J.G; Esteves de Vasconcellos, M.J; Coelho, S.V. Atendimento sistêmico de famílias e redes sociais. Vol 1 Fundamentos teóricos e epistemológicos. Belo Horizonte, Ophicina de Arte & Prosa, 2005.
ESTEVES DE VASCONCELLOS, M. J. A presença e os efeitos da comunicação paradoxal nas interações humanas. In: Aun, J.G; Esteves de Vasconcellos, M.J; Coelho, S.V. Atendimento sistêmico de famílias e redes sociais. Vol 2 – O processo de atendimento sistêmico. Tomo II. Belo Horizonte, Ophicina de Arte & Prosa, 2007.
ESTEVES DE VASCONCELLOS, M. J. Uma narrativa sobre o desenvolvimento da nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico In: Aun, J.G; Esteves de Vasconcellos, M.J; Coelho, S.V. Atendimento sistêmico de famílias e redes sociais. Vol 3 Fundamentos teóricos e epistemológicos. Belo Horizonte, Ophicina de Arte & Prosa, 2010a.
ESTEVES DE VASCONCELLOS, M. J. Distinguindo a Metodologia de Atendimento Sistêmico como uma prática novo-paradigmática, desenvolvida com um “sistema determinado pelo problema”. In: Aun, J.G; Esteves de Vasconcellos, M.J; Coelho, S.V. Atendimento sistêmico de famílias e redes sociais. Vol 3 Fundamentos teóricos e epistemológicos. Belo Horizonte, Ophicina de Arte & Prosa, 2010b.
ESTEVES DE VASCONCELLOS, M. J. Desenvolvendo práticas colaborativas no contexto das políticas públicas, com a aplicação da Metodologia de Atendimento Sistêmico. Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, Instituto NOOS, n. 51, abr 2015, p. 07-24.
ESTEVES-VASCONCELLOS, Mateus. A Nova Teoria Geral dos Sistemas. Dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais. E-book. São Paulo: Livraria Cultura / Kobo Books, 2013. ESTEVES-VASCONCELLOS, Mateus. Não ensine a pescar! Sobre a fundamentação teórica das práticas sistêmicas. Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, Instituto NOOS, n. 50, dez 2014, p.51-73.
MENDONÇA, R. T. A Metodologia de Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais no Centro de Referência de Assistência Social: uma proposta teórica e prática. Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, Instituto NOOS, n.50, dez 2014, p.74-88.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS. Vídeo institucional sobre a aplicação da Metodologia de Atendimento Sistêmico, desenvolvida pelo Programa Parceria Cidadã em diversas Comarcas do Estado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pIEzjbo46r8
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS. Mediação e Negociação de Conflitos Ambientais. Alternativas de atuação do Ministério Público do Estado de Goiás. Goiânia: ESMP-GO, 2016.
¹ Uma forma preliminar desse artigo foi apresentada no Workshop “Pensamento Sistêmico em vários contextos”, Ribeirão Preto – SP, 9-10 out 2011 e atualizada para publicação no site mariajoseesteves.com.br, em 2019.
² Consultora, Professora e Palestrante: Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático r Metodologia de Atendimento Sistêmico. Autora de Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência, 2002 (11ª edição, 2018); Coautora de Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais (Vol I 2005; Vol II 2007; Vol III 2010); Autora de Terapia Familiar Sistêmica. Bases Cibernéticas, 1995; Coautora de Engenharia de Energia da PUC-Minas. Uma iniciativa audaciosa de ensino, 2018. www.mariajoseesteves.com.br.
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