Mundo em Movimento
Pensamento Sistêmico: Uma Nova Visão nas Áreas de Educação, da Saúde, das Empresas, da Ecologia, das Políticas Sociais, do Direito, das Relações Internacionais…¹
Maria José Esteves de Vasconcellos ²
Muito se tem falado sobre pensamento e práticas sistêmicas e sobre novos paradigmas. A visão sistêmica do mundo – ou o pensamento sistêmico – tem sido considerado algo novo, contemporâneo. Eu o tenho apresentado como o novo paradigma da ciência, e então as pessoas me perguntam: o que é pensamento sistêmico?
Destaco três dimensões que constituem uma visão de mundo sistêmica:
- Ver sistemicamente o mundo é ver e pensar a complexidade do mundo. É ver e pensar as relações existentes em todos os níveis da natureza e buscar sempre a compreensão dos acontecimentos – sejam físicos, biológicos ou sociais – em relação aos contextos em que ocorrem. É reconhecer a complexidade organizada do universo.
- É também ver sempre o dinamismo das situações, reconhecendo que o mundo está em “processo de tornar-se”, e que isso nos leva a conviver com situações que não podemos prever e com acontecimentos – físicos, biológicos ou sociais – cuja ocorrência não podemos controlar. Mas também é acreditar nas possibilidades de mudança e evolução dos sistemas.
- É ainda reconhecer que não existem realidades objetivas: vamos constituindo as realidades – físicas, biológicas ou sociais – à medida que interagimos com o mundo. Que enquanto – por meio de nossas conversações – vamos definindo situações como desejáveis, pessoas como deficientes etc, enquanto vão sendo constituídas, essas realidades vão se instalando. E, ao mesmo tempo em que se instalam, vão agindo também, recursivamente, sobre nossas interações com essas situações ou com essas pessoas.
Mas por que considerar nova, contemporânea, essa visão ou pensamento?
Certamente muitos questionarão. Aristóteles já via e pensava a complexidade do universo. Biólogos e cientistas sociais há muito se defrontaram com a instabilidade de seus objetos de estudo, com o constante “vir a ser” dos processos, cujas leis estavam buscando. Filósofos há muito apontaram a inexistência de uma realidade objetiva, independente de quem a observa ou fala dela.
A ciência, entretanto, principalmente a partir do século XVII, adotou pressupostos contrários a tudo isso.
A ciência desenvolveu-se acreditando que, para compreender o mundo e descobrir as leis de seu funcionamento, deveria analisar em partes os todos complexos, inclusive tirando os objetos de seus contextos e levando-os para estudá-los nos laboratórios, por meio de experimentos que mostrassem claramente a causa de cada fenômeno observado. Instalaram-se a fragmentação do objeto de estudo, a compartimentação dos campos do saber, as especializações. Desenvolveu-se uma forma de pensar disjuntiva que, diante de uma nova explicação para algo, tende a rejeitar a anterior.
Mas essa forma de pensar começou a ter sucesso nas ciências físicas, lidando com sistemas mecânicos, dinâmicos. Os cientistas conseguiram tanta previsão e controle sobre os sistemas suborgânicos (a ciência levou o homem à lua!), que esse se tornou o paradigma das ciências em geral. E, para que algum conhecimento fosse reconhecido como científico, tornou-se necessário que, além de apresentar descrições de fenômenos que fossem rigorosas, matematizadas, elas fossem também demonstradas empiricamente. Ou seja, que atendessem aos critérios de objetividade – que não fossem apenas opiniões ou impressões subjetivas do cientista.
E essa forma de ver o mundo e de pensá-lo permaneceu não questionada, subjacente ao trabalho da ciência. É claro que, em algumas disciplinas – a biologia, as ciências sociais – sempre foi muito difícil trabalhar assim, mas essas foram muitas vezes marginalizadas, com o rótulo de soft sciences, enquanto as ciências rigorosas eram as hard sciences.
Mas finalmente as próprias hard sciences, em seu desenvolvimento, acabaram por se defrontar com situações que as levaram a rever aqueles seus pressupostos, aquelas suas crenças básicas. O “princípio da incerteza”, do físico Heisenberg, o funcionamento das partículas subatômicas, os saltos qualitativos dos sistemas dissipativos químicos nos pontos de bifurcação, o funcionamento fisiológico dos seres vivos, apontaram: a complexidade organizada do universo; a instabilidade e a autonomia de muitos deles; a construção intersubjetiva da “realidade” por aqueles que a percebem, construção essa que se dá num espaço consensual, constituído na linguagem.
E aí, então, instala-se na ciência o que se tem chamado de revolução paradigmática. Revolução que vem se realizando com a contribuição de importantes cientistas e epistemólogos da ciência, tais como: o químico russo Ilya Prigogine; o físico e ciberneticista austríaco Heinz von Foerster; o biofísico francês Henri Atlan; os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela; o sociólogo e filósofo da ciência, o francês Edgar Morin, e tantos outros.
O mundo passa a ser pensado e descrito em termos de sistemas – conjuntos de elementos em interação. O foco passa a estar nas relações, não só as relações entre os elementos do sistema e deste com seu meio, mas também as relações entre o sistema e aquele que o descreve e trabalha com ele. Amplia-se o foco: do elemento (o indivíduo) para o sistema (a família, o grupo de trabalho, a escola), e para os sistemas de sistemas (os ecossistemas, as redes sociais, as comunidades, as nações, as comunidades internacionais).
Sabemos que nossos paradigmas – pressupostos, crenças, enfim, nossa visão de mundo – se manifestam em nosso modo de estar e agir no mundo. Nossa sociedade se fundamenta na ciência, valoriza o conhecimento científico, e as pessoas perguntam: isso é científico? Já está comprovado cientificamente? Entretanto agora os próprios cientistas estão revendo seus pressupostos, e isso acarretará mudanças em nossa forma de estar e agir no mundo.
Assim, ao assumir o pensamento sistêmico, o cientista, o profissional, o homem comum, estará assumindo uma visão de mundo que terá profundas implicações em seus relacionamentos e em suas práticas, como se pode detectar em alguns exemplos.
Na área pedagógica, as dificuldades do aluno serão vistas sempre em relação com o contexto em que se manifestam, ou seja, as relações com a professora e a equipe escolar, com os colegas, com a família, com as formas como todas essas pessoas estão definindo essas dificuldades e lidando com elas. E a intervenção não será apenas a aula de reforço ou as práticas de reeducação aplicadas sobre o aluno. Serão abordadas as relações entre todos os envolvidos, ou seja, o “sistema linguístico que se constitui em torno do problema”.
Na área da saúde, uma convicção de que uma doença é crônica poderá ser revista quando se amplia o foco, e se descobrirá, por exemplo, que uma paciente precisa manter seus sintomas para não perder os contatos com o profissional de saúde, a única relação significativa que ela tem no momento. Percebe-se então que ela precisa melhorar um pouco para mostrar ao profissional que o tratamento está indo bem e, em seguida, recair um pouco para não perder a relação com ele. Assim também as terapias, na busca de soluções para as dificuldades de quem procura ajuda, abordarão as relações familiares e as relações de família com a rede social, mobilizando os poderosos recursos inerentes à existência de vínculos afetivos e sociais.
Nos atendimentos sistêmicos nas empresas, também o foco não estará nos deficit ou nas limitações do empregado, mas a preocupação será a de criar, com a participação dele, contextos onde possa render mais e estar mais satisfeito. Aí também o foco será ampliado, vendo-se sempre a empresa inserida no contexto da sociedade, no ecossistema.
Nas políticas sociais, a visão sistêmica implicará a convicção da impossibilidade de implantação de programas, idealizados apenas pelos que estão no ápice de uma pirâmide e aplicados por técnicos nos usuários ou receptores da assistência. Implicará a convicção de que não é o especialista que detém as melhores soluções. A preocupação será a de criar contextos de coparticipação, em que todos os implicados – governo, técnico e usuários – possam coconstruir soluções viáveis e satisfatórias, assumindo todos suas responsabilidades, com a consequente manifestação da autonomia. Em vez dos especialistas em conteúdos ou em estratégias para soluções de problemas, atuarão os “experts na criação de contextos de autonomia” para o sistema.
Mas também, em nossos relacionamentos pessoais cotidianos, viveremos as implicações de nossa visão de mundo. A ciência tradicional nos ensinou a diagnosticar, rotular o outro: “ela é problemática”, “ele é autoritário”, “ela é doentiamente ciumenta” e portanto, a não só culpá-lo pelas dificuldades do relacionamento, como responsabilizá-lo pela mudança: “você precisa se conscientizar de que…”, “você precisa deixar de…”. Acontece que uma das regras fundamentais para pensarmos sistemicamente é não usar o verbo ser. Assim diríamos: “ele está autoritário”, “ela está ciumenta” etc. Mudando nossa forma de falar, muda a realidade que se constitui, que fazemos emergir. Se ele está ciumento, pode vir a não estar. Se está, deve estar ciumento na relação com alguém. Com quem? Se está ciumento comigo sou parte desse “problema”: como estou participando, contribuindo para isso? Que posso fazer, em que eu posso mudar para facilitar nosso relacionamento? Quem pensa assim, está pensando sistemicamente, admitindo que o problema está nas relações e não apenas em possíveis características pessoais de um indivíduo.
Outra implicação da nossa mudança de paradigma será um genuíno respeito pela verdade do outro. A ciência evidencia hoje que não existe realidade independente de um observador. Devido à forma como somos biologicamente constituídos, não existe nenhum critério objetivo para validarmos nossas experiências subjetivas do mundo. Portanto, por mais que eu seja considerada especialista ou autoridade em determinado assunto, não há critério objetivo para validar qualquer afirmação minha sobre o mundo, para considerá-la superior à verdade do outro. A implicação desse reconhecimento será, pois, a de legitimar “genuinamente” a verdade do outro e, conversando, fazermos emergir uma “realidade” pela qual seremos ambos responsáveis. “Reconhecer o outro como legítimo outro nos meus espaços de convivência”: uma utopia? Sim, uma utopia cientificamente fundamentada!
¹ Artigo publicado com o título “Mundo em Movimento”, por ocasião do lançamento do livro Pensamento sistêmico. O novo paradigma da ciência, no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, sábado, 31 de agosto de 2002, p. 3.
² Consultora, Professora e Palestrante: Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático r Metodologia de Atendimento Sistêmico. Autora de Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência, 2002 (11ª edição, 2018); Coautora de Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais (Vol I 2005; Vol II 2007; Vol III 2010); Autora de Terapia Familiar Sistêmica. Bases Cibernéticas, 1995; Coautora de Engenharia de Energia da PUC-Minas. Uma iniciativa audaciosa de ensino, 2018. www.mariajoseesteves.com.br.
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