Compreendendo a Dificuldade da Mudança: “Jogo sem Fim” e Política
Elementos da teoria sistêmica da comunicação oferecem instrumentos para a compreensão da crise que ameaça a credibilidade do parlamento brasileiro ¹
Maria José Esteves de Vasconcellos ²
Comunicações paradoxais, mensagens indecifráveis, são comuns nos sistemas humanos que constituímos, na família, nos negócios, na política… Aprisionam os participantes, deixando-os sem saída. Se alguém afirma “estou mentindo”, o ouvinte não saberá se ele está mentindo ou falando verdade: a afirmação só será verdadeira, se não o for. Se alguém recebe a instrução “seja espontâneo”, também ficará sem saída: para ser espontâneo, não poderia seguir a instrução.
Distinguimos um sistema humano, quando percebemos uma forma de organização, evidenciada nas “regras de relação” que lhe dão identidade, seguidas pelos que o constituem, enquanto ele continuar existindo como tal. Seus padrões de interação são as “regras do jogo”, seja do sistema familiar, empresarial, político… Uma vez instituídas, as relações se dão de acordo com elas.
Um exemplo da teoria sistêmica da comunicação ajuda-nos a compreender os últimos fatos políticos. Se um grupo de pessoas adotasse um jogo em que qualquer afirmação feita no grupo devesse ser entendida como negação, uma vez iniciado o jogo, seria difícil retomar o modo anterior de comunicação. Para mudar essa regra do sistema, seria preciso metacomunicar, comunicar sobre a regra. Mas tal proposta, feita de dentro do sistema, teria significado indeterminável. Assim começa um “jogo sem fim”. Para não serem capturados pelo dilema, os jogadores poderiam: 1. combinar previamente uma regra para a meta-comunicação (por exemplo, usar outra língua); 2. combinar previamente um tempo de duração do jogo; 3. apresentar o dilema a um árbitro de fora do sistema – com quem mantenham comunicação normal – para que ele decida sobre o fim do jogo. Depois do jogo iniciado, só poderiam recorrer a essa última possibilidade. Esse árbitro viabilizaria o que o sistema não está podendo gerar sozinho: uma mudança em suas regras, com as quais estão todos comprometidos e que exercem coerção sobre todos. Assim funcionam os sistemas humanos.
Algumas das regras constitutivas do sistema político são: competir em busca do poder (base da distinção aliados x adversários); auto-promover-se e desqualificar os adversários; aliar-se circunstancial e provisoriamente, apenas visando a vantagens nas próximas disputas; fazer barganhas, dissimular, desconfiar, manipular, mentir, ser esperto, fazer jogadas estratégicas… Qualquer dessas regras, não explicitadas, aprisiona os membros do sistema e gera um “jogo sem fim”. A regra de jogar com esperteza, por exemplo, impedirá que alguém leve em consideração uma necessidade do opositor, mesmo que a reconheça como legítima.
A CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito – se constitui como um sistema político e, apesar de ter objetivos e regras específicas, não escapa das regras gerais. Assim, seus membros usam estrategicamente seu tempo de exposição na mídia para autopromoção e ataque aos adversários, em vez de usá-lo em perguntas investigativas. Seguem a regra da esperteza: usam na CPI as regras das tribunas ou dos horários políticos.
E fica evidente que todos são reféns do jogo que constituem ao jogá-lo. Na CPI [do Mensalao], um deputado faz várias acusações ao investigado e pergunta-lhe: “Como podemos saber que V Exa está falando a verdade, se denuncia outros por usufruírem vantagens que V Exa também usufruía e ocultava usufruir?”. Esse deputado tentou metacomunicar, supondo que, como membro da CPI, pudesse fazê-lo. Mas recebeu a resposta: “Tudo de que V. Exa me acusa, eu lhe devolvo. Aplica-se também a V Exa. Não sou melhor que ninguém. Aqui somos todos iguais. (…) A única vestal (honesta, virgem) é a senhora F (de partido que nunca disputou eleições), porém só até as próximas eleições”. Para ser reeleita, ela teria que jogar o jogo eleitoral, tornando-se impura como os demais. Outro acusado também explicitou: “Não declarei (o caixa 2). Não digo que a gente não deva respeitar a lei, mas, se não jogar as regras do jogo, tem de deixar a política”.
Esses personagens políticos dizem o que já sabemos sobre sistemas: seguimos as regras de interação e assim garantimos a sobrevivência do sistema que constituímos. São as jogadas que mantêm a identidade do sistema. No caso da CPI, investigado e investigadores são membros do mesmo sistema político. O acusado, conhecendo bem o jogo político, pode lembrar a seus parceiros, aos investigadores, que continuam jogando esse jogo e que suas regras prevalecem para todos.
Torna-se então compreensível a desesperança de muitos quanto aos resultados da CPI. “Em qualquer modelo [eleitoral, político] os vícios se repetirão” (Pe. Magela, ex-reitor da PUC Minas, neste jornal). “Não acredito que esse parlamento possa fazer as mudanças” (Jornalista Paulo Markum, no Programa Roda Viva).
Como poderiam os jogadores livrar-se desse “jogo sem fim”, se suas regras não incluem uma regra sobre mudanças nas regras? E se as propostas de mudança são lances do próprio jogo? Parece impensável que o sistema produza uma mudança que faça diferença. O que seria necessário para acontecerem “mudanças de 2ª Ordem”, que mudem a organização do sistema? Para acontecer um verdadeiro salto qualitativo, com geração de um novo sistema, com novas regras de funcionamento (morfogênese)? Uma mudança que elimine a regra informal – porém fundamental em sua atual organização – de que é permitido mentir e descumprir as regras formais, por exemplo, usar o caixa 2 e ser desculpado por estar de acordo com uma regra fundamental não explicitada e por estarem quase todos infringindo a regra formal?
Tem sido inestimável a contribuição da mídia: estando fora do sistema em crise, metacomunica e denuncia as jogadas. E a sociedade civil – também de fora do sistema em crise como poderia contribuir efetivamente para uma alteração radical das regras do jogo político que hoje abomina?
Claro que a “mudança de 2ª Ordem” a que me refiro não seria uma reforma política, das regras eleitorais, dos financiamentos de campanhas, da fidelidade partidária… Essas seriam apenas “mudanças de 1ª. Ordem”, das regras formais, talvez com prescrição dos mesmos remédios (cassações, advertências, impeachment): fariam apenas o sistema se reequilibrar após a crise, mantendo-o com as regras fundamentais de sua atual organização (morfostase). Uma “mudança de 2ª. Ordem” exigiria que um novo sistema se constituísse com uma regra fundamental consensual que não permitisse o descumprimento das regras formais, estabelecidas visando ao bem da coletividade. Exigiria “considerar o outro [quem quer que ele seja] como legítimo outro, em meu espaço [todo e qualquer] de convivência”, sempre. E que isso acontecesse genuinamente. Esse consenso significaria uma revolução ética – só possível com uma mudança radical nas premissas que constituem a estrutura pessoal de cada um dos jogadores. A mudança das regras do jogo seria então uma implicação, uma conseqüência inevitável. E o parlamento já não seria o mesmo, constituiria um sistema político com uma nova identidade. Será que o continuaríamos chamando de “sistema político”?
Post-scriptum. Alguns meses depois da publicação deste artigo, todos os parlamentares – que ainda não tinham tido cassados seus direitos políticos – e que continuavam sob investigação pela CPI, foram absolvidos pelo plenário da Câmara dos Deputados, contrariando as recomendações da Comissão de Ética.
¹ Publicado, com o título “Jogo sem fim e política”, no Jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, p. 3, em 31 de dezembro de 2005.
² Consultora, Professora e Palestrante: Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático r Metodologia de Atendimento Sistêmico. Autora de Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência, 2002 (11ª edição, 2018); Coautora de Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais (Vol I 2005; Vol II 2007; Vol III 2010); Autora de Terapia Familiar Sistêmica. Bases Cibernéticas, 1995; Coautora de Engenharia de Energia da PUC-Minas. Uma iniciativa audaciosa de ensino, 2018. www.mariajoseesteves.com.br.