Sistêmico? A que se refere hoje? ¹
Maria José Esteves de Vasconcellos ²
Ao deparar com um capítulo com esse título, num livro que aborda os sistemas eletroenergéticos no ambiente 5,0, você, leitor, pode perguntar o porquê da inclusão aqui deste capítulo, ou como ele se relaciona com o tema deste livro.
Estamos aqui refletindo – e pretendendo desencadear reflexões – sobre possíveis avanços em nossa forma de estar no mundo e de viver em sociedade.
Tem-se considerado que avançar da Indústria 4.0 em direção ao Ambiente 5.0 ou à Sociedade 5.0 implica repensar nossa organização social, deslocando o foco que teria sido colocado nos desenvolvimentos tecnológicos para colocá-lo no desenvolvimento humano, integrando os benefícios das tecnologias à qualidade de vida do ser humano, em ambientes de colaboração.
Isso parece expressar um desejo de mudança de nossa forma de viver e de nos relacionar e podemos nos perguntar:
– O que precisa acontecer para que essa mudança de fato ocorra?
– Como podemos atuar para que a sociedade se comprometa com avanços em direção ao Ambiente 5.0?
– O que precisa acontecer para que, ocorrendo a mudança, seja uma mudança sustentável?
Sabemos que, sempre que as circunstâncias assim o permitam, todos tendemos a nos comportar de modo coerente com aquilo em que acreditamos, ou seja, nossos comportamentos se embasam em nossas premissas, crenças ou pressupostos (Esteves de Vasconcellos 2020).
Hoje sabemos também que seres vivos – e seres vivos humanos – se comportam de acordo com as possibilidades contidas em suas estruturas e que as “instruções” apresentadas pelo meio ao ser vivo terão seu efeito dependente dessas possibilidades. Assim, segundo Maturana (1997/1987), é impossível a “interação instrutiva” com seres vivos e com seres humanos – seres vivos que vivemos na linguagem.
São as possibilidades contidas em nossa estrutura relacional ³ – adquiridas ao longo de nossa história de interações com o meio, tais como a habilidade de dirigir automóvel ou a habilidade de falar um segundo idioma, assim como nossas crenças ou premissas – que nos permitem algumas e não outras interações com o meio. É por isso que dizemos que nossas premissas embasam nossos comportamentos.
Assim, reconhecemos hoje que para que aconteçam mudanças sustentáveis de comportamento, elas deverão decorrer de mudanças das premissas que embasam o comportamento. Reconhecemos então a inadequação, por exemplo, de uma instituição ou de um pequeno grupo de pessoas se dedicar à elaboração de uma “Política de Solidariedade”, a ser implantada em determinado contexto. Comportamentos de solidariedade passarão a ocorrer naturalmente se esse valor ou premissa passar a fazer parte da estrutura relacional das pessoas e é pouco provável que isso aconteça com a implantação de uma “Política de Solidariedade”.
A ciência desempenha um papel central na validação do conhecimento em nossa cultura ocidental e, portanto, em nossas explicações e compreensão dos fenômenos (Maturana 1997/1988). Por isso, a ciência interessa não só aos cientistas, mas também aos leigos, que perguntam com frequência: isso é científico? já está comprovado cientificamente?
Também os comportamentos dos cientistas – assim como os dos profissionais que desenvolvem práticas científicas em variados contextos – estão embasados em crenças e pressupostos. Acontece que os pressupostos que constituem o paradigma ou a epistemologia dos cientistas – que embasam não só as pesquisas científicas, como as tecnologias científicas – estão mudando e está emergindo um novo paradigma da ciência.
Tendo identificado como sistêmicos esses novos pressupostos dos cientistas, propus considerar-se o pensamento sistêmico como o novo paradigma da ciência (Esteves de Vasconcellos 2002), cujas implicações podem viabilizar – e têm viabilizado – práticas efetivamente inovadoras em diversos contextos. Assim, tenho apresentado essa nova visão de mundo, o Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático como um convite para transformarmos nosso viver.
Acredito que o avanço em direção ao Ambiente 5.0 ou à Sociedade 5.0 vai depender de termos cientistas, profissionais e leigos assumindo os pressupostos que constituem o Pensamento Sistêmico Novo-paradigmático e, assim, penso que se justificam aqui as considerações que se seguem sobre o(s) uso(s) que fazemos do adjetivo “sistêmico”.
A multiplicidade de usos do adjetivo sistêmico
Ultimamente, pode-se perceber que o adjetivo sistêmico tem assumido vários significados, tais como complexo, holístico, articulador, que amplia, que inclui, integrador, entre outros, e que, além disso, tem adjetivado diferentes substantivos.
Em 2002, quando sistematizei minha proposta de considerarmos o pensamento sistêmico como o novo paradigma da ciência, já apontei essa multiplicidade de usos do adjetivo sistêmico(a) (Esteves de Vasconcellos 2002).
Aliás, já tinha apontado uma confusão conceitual na área da Terapia Familiar Sistêmica, identificando não só uma “multiplicidade de rótulos”, como “definições divergentes” para os mesmos, tudo isso com frequência dificultando um melhor desenvolvimento da área. Naquele momento, me propus então a fazer algumas pontuações e convidar à reflexão sobre a precisão desse quadro conceitual (Esteves de Vasconcellos 1992; 1995).
Aqui também quero propor uma reflexão sobre o que venho percebendo como usos indiscriminados ou pouco cuidadosos do adjetivo sistêmico, o que muitas vezes vem criando dúvidas sobre o que se entende hoje por sistêmico.
Em 1968, em seu livro Teoria Geral dos Sistemas, Bertalanffy já tinha apontado que a palavra sistema se colocava no topo de uma lista dos termos que vinham aparecendo com maior frequência na literatura científica.
Hoje, mais de 50 anos depois, parece que a situação não é muito diferente. Uma pesquisa cuidadosa mostrará provavelmente que o adjetivo sistêmico(a) vem sendo cada vez mais usado (direito sistêmico, constelação sistêmica, pedagogia sistêmica, inovação sistêmica, liderança sistêmica, coaching sistêmico, design sistêmico, abordagem psicométrica sistêmica, gestão sistêmica, leitura corporal sistêmica, psicologia sistêmica…), às vezes até sugerindo que a qualificação de algo como sistêmico pode conferir um sentido de atualidade ou de prestígio ao que está sendo apresentado como sistêmico(a).
Você mesmo pode fazer a experiência de listar todas as palavras que já tenha encontrado acompanhadas do adjetivo sistêmico(a). Partindo do pressuposto de que aqui estejamos nos movendo no domínio linguístico⁴ da ciência, acredito que muito provavelmente você listará palavras que se referem às diferentes dimensões que podemos distinguir no nosso afazer científico, a saber: as práticas, as teorias e a epistemologia.
A prática é a ação/intervenção do profissional / cientista em relação ao fenômeno de seu interesse, no nosso caso, a ação do profissional sistêmico sobre o sistema por ele distinguido.
A teoria é um conjunto articulado de princípios explicativos do fenômeno, que o profissional / cientista usa para explicar ou compreender o fenômeno que ele está abordando, no nosso caso, o funcionamento do sistema.
A epistemologia / paradigma / pensamento é um conjunto de crenças, pressupostos, premissas, ou seja, aquilo em que o profissional acredita, sua visão de mundo, no nosso caso, uma visão de mundo sistêmica.
Ao desenvolverem suas práticas, concebidas como aplicações da ciência, os profissionais tendem a refletir sobre os seus fundamentos: querem compreender como funcionam, como produzem os efeitos que produzem, ou seja, refletem sobre os fundamentos teóricos de suas práticas. E, também, se perguntam sobre a consistência dessas práticas com sua própria visão de mundo, ou seja, refletem sobre os fundamentos epistemológicos de suas práticas.
Tenho pontuado que uma teoria – sendo um conjunto de princípios explicativos – é exterior a mim e eu a aplico, podendo sucessivamente aplicar ou lançar mão de diferentes teorias para compreender o fenômeno em que esteja interessado ou para compreender o funcionamento e os efeitos de minha prática. Por outro lado, a epistemologia – sendo minhas crenças, premissas ou pressupostos epistemológicos – faz parte da minha estrutura relacional e, portanto, me implica, ou seja, tem como consequência inevitável que eu busque ou queira atuar de forma consistente com minhas premissas, com o que acredito. Daí a importância que assumem as reflexões sobre nossa própria epistemologia ou visão de mundo.
Vejamos, a seguir, que epistemologia, que teorias, que práticas podemos entender como sistêmicas.
Epistemologia / visão de mundo, uma dimensão do afazer científico
Até aqui, neste texto, já apareceram diversas palavras usadas em referência a epistemologia e vale a pena explicitar essa equivalência⁵ entre pressuposto epistemológico, pensamento, premissa, crença, verdade, paradigma, preconceito, visão de mundo.
Além dessas, entre as palavras que você listou, podem ter aparecido também: perspectiva, concepção, percepção, postura, em geral usadas em referência à dimensão epistemológica do afazer científico.
Há muito, a epistemologia vem sendo considerada como uma dimensão do afazer científico, apesar de se constituir como uma área de estudo da Filosofia. Os filósofos vinham se encarregando de refletir sobre os pressupostos subjacentes às atividades dos cientistas, ou seja, aquilo em que os cientistas acreditam quando desenvolvem seu trabalho científico. Entre esses pressupostos, estão: a crença na necessidade de análise e simplificação do objeto de estudo (pressuposto da simplicidade), a crença na estabilidade do mundo, o qual pode ser descrito por leis deterministas e reversíveis (pressuposto da estabilidade) e principalmente a crença na possibilidade do conhecimento objetivo do mundo (pressuposto da objetividade).
Essa epistemologia – que responde à pergunta sobre “como conhecemos?” – vem sendo então chamada de Filosofia da Ciência e, ao longo dos tempos, muitos filósofos elaboraram suas respostas para a pergunta epistemológica, ou seja, elaboraram teorias filosóficas do conhecimento –, tais como, entre outras, a teoria idealista, a fenomenológica, a empirista – muitas vezes questionando o pressuposto da objetividade.
Nessa situação, a partir da separação instalada por Descartes, entre Ciência e Filosofia, cabe ao cientista o estudo objetivo e rigoroso do universo, que é o objeto do conhecimento, ficando reservado ao filósofo o estudo especulativo daquele que conhece, que é o sujeito do conhecimento. Assim, os questionamentos dos filósofos, feitos no domínio linguístico da Filosofia, em relação à crença dos cientistas na possibilidade da objetividade, tendiam a não repercutir no domínio linguístico da Ciência, onde se adotam outros critérios para validar as afirmações.
Esse seria, muito resumidamente, o quadro do que tem sido chamado de ciência tradicional. Nos Capítulos 2 e 3 do Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência (Esteves de Vasconcellos 2002), encontram-se descrições mais detalhadas a respeito do paradigma da ciência tradicional.
Aconteceu que, a partir dos anos 60/70 do século XX, cientistas / pesquisadores, trabalhando em seus laboratórios, em microfísica (Niels Bohr – a questão da contradição lógica onda / corpúsculo), em termodinâmica (Boltzman – a questão da desordem, da agitação desordenada das moléculas), em física quântica (Heisenberg – a questão da impossibilidade da objetividade e o princípio da incerteza), em físico-química (Prigogine – os saltos qualitativos do sistema que funciona longe do equilíbrio), em biologia experimental (Maturana e Varela – o caminho explicativo da objetividade entre parênteses), em física cibernética (von Foerster – a conexão entre observador, linguagem, sociedade e os sistemas observantes), em biofísica (Atlan – a questão da complexidade), se defrontaram com evidências que os levaram a questionar, entre outras, as noções da compartimentação do saber, do acesso a realidades objetivas, da possibilidade de instruções serem seguidas por sistemas humanos os quais, como sistemas vivos, foram reconhecidos como sistemas autônomos.
Destaco especialmente as contribuições do biólogo chileno, Humberto Maturana e do ciberneticista austríaco Heinz von Foerster, os quais nos instigam a repensar nossa crença na possibilidade da objetividade, ao afirmarem que “tudo é dito por um observador” (Maturana 1987) e que “o que eu digo diz mais de mim do que da coisa observada” (Foerster 1991).
Nos laboratórios de Biologia Experimental, ficou evidente que a impossibilidade de falarmos objetivamente do mundo – quer seja o mundo inanimado, quer seja o mundo vivo, quer seja o mundo humano ou social – se deve às características estruturais (fechamento operacional) do sistema nervoso do sujeito do conhecimento. Isso nos leva inevitavelmente a reconhecer que só nos resta a possibilidade de construirmos o conhecimento em conversações em que compartilhemos nossas experiências subjetivas do mundo (pressuposto da intersubjetividade ou da construção intersubjetiva do conhecimento).
Tudo isso desencadeou mudanças de premissas dos cientistas e suas novas premissas estão constituindo um novo paradigma da ciência emergente, um paradigma sistêmico de 2ª Ordem (Esteves de Vasconcellos 1992, 2002). Os cientistas questionaram e reviram suas crenças tradicionais e assumiram os novos pressupostos: complexidade dos fenômenos, em todos os níveis da natureza; instabilidade do mundo, imprevisibilidade e incontrolabilidade dos fenômenos; impossibilidade da objetividade e inevitável coconstrução da “realidade” e de todo conhecimento sobre o mundo, em espaços consensuais de intersubjetividade.
A Figura 1 mostra a ultrapassagem dos pressupostos epistemológicos da ciência tradicional pelos novos pressupostos epistemológicos da ciência contemporânea emergente.
Considerando que, ao passarmos a ver sistemicamente o mundo, deslocamos nosso olhar dos elementos – que resultaram do olhar analítico – e passamos a focalizar as relações – assim fazendo emergir para nós os sistemas – distingui o aspecto sistêmico em cada um desses três novos pressupostos assumidos pelos cientistas.
Assim, considerei o conjunto dos três novos pressupostos, articulados entre si como o novo paradigma da ciência e distingui como sistêmica essa nova forma de ver, esse novo pensamento, esse novo paradigma. Por isso, dei ao meu livro o título de Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência. Trata-se, pois, de um pensamento que é complexo (que reconhece a complexidade, sem tentar reduzi-la), que é processual (que reconhece que o mundo está em processo de tornar-se) e que é relacional (assumindo que todo conhecimento está inevitavelmente relacionado ao observador, ou seja, ao sujeito que conhece).⁶
Considerando a equivalência entre os termos epistemologia e paradigma, poderíamos dizer que o livro Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência aborda a epistemologia sistêmica, a nova epistemologia da ciência. Entretanto, ressalto que aqui se rompe a equivalência entre Epistemologia e Filosofia da Ciência, a partir do momento em que os próprios cientistas levam para seus laboratórios a pergunta epistemológica – a pergunta sobre como conhecemos – e respondem-na cientificamente.
Diversos cientistas, tais como Mc Culloch, Piaget, Lorenz, já vinham manifestando a preocupação por uma “naturalização da epistemologia”, pretendendo trazer o sujeito e sua epistemologia, seu modo de conhecer, para o âmbito da ciência. Quando a abordagem científica da questão do conhecimento do mundo começou a ser reivindicada pelos físicos, chegou-se mesmo a afirmar que “a física quântica nada mais fez do que sequestrar a epistemologia, saqueando a filosofia” (Strathern 1998, p. 84).
Assim, temos hoje uma epistemologia científica ou uma ciência da ciência, a qual se relaciona, dentro do mesmo domínio linguístico da ciência, com as teorias científicas e com as práticas científicas, como a Figura 2 pretende evidenciar.
Considerando o pensamento sistêmico como o novo paradigma da ciência e admitindo a equivalência entre os termos paradigma e epistemologia, podemos agora falar de uma epistemologia sistêmica – no sentido de que todo conhecimento se relaciona ao sujeito do conhecimento –, assim como de paradigma sistêmico ou de pensamento sistêmico.
Tenho acrescentado à denominação desse pensamento sistêmico o adjetivo novo-paradigmático e penso que vale a pena explicitar o porquê dessa adjetivação (Esteves de Vasconcellos 2004).
É claro que, se considero o pensamento sistêmico como o novo paradigma da ciência, essa adjetivação se constitui como uma redundância. Porém, estamos numa fase de transição e hoje nem toda visão sistêmica pode ser distinguida como novo-paradigmática (Esteves de Vasconcellos 2004). Temos hoje cientistas / profissionais sistêmicos que não reconheceram a impossibilidade de falarmos objetivamente do mundo e, portanto, ainda não assumiram que a única alternativa que temos é a da construção conjunta do conhecimento, em espaços consensuais de intersubjetividade. Na Figura 3, temos, de um lado, a visão sistêmica de 1ª Ordem, do profissional / cientista sistêmico que já pensa a complexidade e a instabilidade do mundo, mas ainda mantém a crença na possibilidade da objetividade (visão sistêmica de 1ª Ordem). Do outro lado, a visão sistêmica novo-paradigmática, daquele profissional / cientista sistêmico que, além de pensar a complexidade e a instabilidade do mundo, já reconheceu e assumiu a nossa impossibilidade de sermos objetivos, devido à forma como somos biologicamente constituídos, devido ao fechamento operacional do nosso sistema nervoso (visão sistêmica de 2ª Ordem).
Então, quando o profissional sistêmico reflete sobre o fundamento epistemológico de sua prática, volta-se sobre sua própria postura epistemológica ou sua visão de mundo: assumi genuinamente a crença na impossibilidade da objetividade com todas as suas implicações? Acredito que a realidade emerge das minhas distinções e que se configura nas conversações, quando diferentes sujeitos compartilham suas distinções em espaços de intersubjetividade? Ou ainda preservo a existência de uma realidade que preexiste às visões de diversos observadores, admitindo apenas que existem diferentes percepções do real? Assumo uma visão sistêmica de 2ª Ordem? Ou minha prática ainda reflete uma visão sistêmica de 1ª Ordem?
Considerando que é o profissional, o cientista – e não a ciência – quem assume uma visão de mundo, perspectiva, pensamento, paradigma, premissas, pressupostos, enfim uma epistemologia sistêmica, será preciso ter presente ainda que esse profissional / cientista pode estar assumindo uma epistemologia sistêmica de 1ª Ordem ou de 2ª Ordem (novo-paradigmática) e que essas diferentes visões de mundo sistêmicas repercutirão em sua forma de estar no mundo, inclusive em suas práticas sistêmicas.
Teoria, uma dimensão do afazer científico
Já vimos que a teoria se constitui como um conjunto de princípios, articulados entre si, com os quais o cientista pretende compreender (ou explicar) o fenômeno no qual está interessado.
Entre as palavras que você listou – adjetivadas com sistêmico(a) – é provável que se encontrem as palavras modelo, linha, enfoque, movimento, abordagem, frequentemente tomadas no sentido de teoria.
As teorias costumam se referir a fenômenos específicos, por exemplo, a queda dos corpos, o calor, a comunicação humana, o funcionamento das famílias, o comportamento de comprar ou consumir, o funcionamento das organizações, o comportamento dos administradores, o processo de cura das doenças etc, cada uma desenvolvendo-se dentro de uma disciplina científica.
As teorias sistêmicas mais conhecidas atualmente – a Teoria Cibernética, de Wiener (1948; 1950) e a Teoria Geral de Sistemas, de Bertalanffy (1967; 1968) – surgiram na segunda metade do século XX com a pretensão de não serem teorias para fenômenos específicos, mas sim teorias sistêmicas gerais, transcendendo as fronteiras das diferentes disciplinas, aplicáveis aos sistemas em geral, onde quer que esses fossem distinguidos.
Na Figura 4, Quadro de Referência para as Teorias Sistêmicas, apresento as teorias sistêmicas nas duas vertentes da ciência dos sistemas distinguidas por Bertalanffy (1967), uma, a vertente dos sistemas máquinas, a vertente mecanicista e a outra, a vertente dos sistemas vivos, a vertente organicista.
Ao destacar dois momentos, o do paradigma tradicional e o do novo paradigma, o Quadro mostra que, tanto a Teoria Cibernética de Wiener (na vertente mecanicista da ciência dos sistemas), quanto a Teoria Geral dos Sistemas de Bertalanffy (na vertente organicista dessa ciência), apesar de terem deslocado o foco do elemento componente do sistema para as relações entre os componentes, promovendo assim significativo avanço em relação às teorias desenvolvidas na ciência tradicional, ainda se mantiveram vinculadas ao paradigma tradicional. Isso porque o contexto em que viveram, há mais de sessenta anos, não permitiu nem a Wiener, nem a Bertalanffy, desprender-se da concepção tradicional de que os sistemas existem na natureza e de que cabe aos cientistas compreendê-los “tal como são na realidade”. Nenhum dos dois questionou radicalmente a possibilidade de acesso a uma realidade objetiva, nem chegou a pensar – como Maturana – que a realidade e os sistemas emergem das distinções do observador e se configuram nas conversações entre diferentes observadores. Distingo-os, portanto, como teóricos sistêmicos de 1ª Ordem, que não chegaram a realizar sua pretensão de que suas teorias fossem, de fato, transdisciplinares. A meu ver, uma teoria transdisciplinar só se torna possível sendo uma teoria sistêmica de 2ª Ordem, a partir do reconhecimento da inevitável participação do observador – o sujeito do conhecimento – em toda e qualquer afirmação sobre seu objeto de interesse. Portanto considero tanto a Teoria Cibernética quanto a Teoria Geral dos Sistemas como teorias sistêmicas de 1ª Ordem, que mantém o pressuposto da objetividade, da ciência tradicional.
Passando agora para as teorias sistêmicas de 2ª Ordem ou novo-paradigmáticas. A Teoria da Autopoiese (autopoiesis = autoprodução ou produção de si, de seus próprios componentes) do biólogo Maturana, embora eu a distinga como uma teoria sistêmica novo-paradigmática ou de 2ª Ordem, apresenta-se – como muito claramente explicitado por seu autor – como uma teoria para fenômenos específicos, uma teoria para os seres vivos, enquanto seres biológicos, uma teoria para o nível orgânico da natureza. Maturana não elaborou uma teoria dos sistemas sociais humanos. Ademais, também não desenvolveu uma teoria para os sistemas em geral ou uma “teoria geral de sistemas”. De fato, Maturana elaborou também extensões de sua Teoria da Autopoiese para a compreensão dos seres humanos, enquanto seres vivos que vivem na linguagem, o que constitui a sua Biologia do Conhecer, ou seja, uma proposta para compreendermos o como conhecemos, sendo seres vivos humanos, ou seja, para compreendermos como nosso modo de conhecer está embasado na nossa constituição biológica.
Assim como Maturana na vertente organicista, Von Foerster na vertente mecanicista também apontou as consequências da inclusão do observador nas descrições científicas, quando preconizou que a Cibernética se aplicasse a si mesma, constituindo-se como Cibernética da Cibernética e quando desenvolveu a concepção do Construtivismo, ou seja, a compreensão de como construímos o conhecimento do mundo. Entretanto, também essa fundamental contribuição de Von Foerster à ciência contemporânea não correspondeu a uma teoria sobre sistemas sociais, nem a uma “teoria geral de sistemas”.
Nem a Biologia do Conhecer, nem a Cibernética da Cibernética se constituem como teorias de sistemas. Constituem-se antes como teorias do conhecimento, ou epistemologias, que respondem cientificamente à pergunta sobre “como os seres vivos / humanos conhecemos o mundo”. Maturana e von Foerster trouxeram para o domínio linguístico da ciência a questão epistemológica, ou seja, a questão do “sujeito do conhecimento”.
Até aqui, não encontramos no Quadro de Referência para as Teorias Sistêmicas nenhuma Teoria Geral de Sistemas novo-paradigmática, assim como também nenhuma teoria sistêmica novo-paradigmática para sistemas sociais. Essa era a situação até o momento em que publiquei o Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência (Esteves de Vasconcellos 2002), quando esse Quadro de Referência para as Teorias Sistêmicas não continha a última célula inferior direita – “A Nova Teoria Geral dos Sistemas” e a “Teoria Geral dos Sistemas Autônomos”. Essa célula foi incluída na edição revista e ampliada, de 2013, depois da publicação, em 2013, do livro de Mateus Esteves-Vasconcellos, A Nova Teoria Geral dos Sistemas. Dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais (Esteves-Vasconcellos 2013).
Hoje entendo que esse livro veio preencher uma lacuna teórica, no âmbito da ciência de sistemas, disponibilizando para nós, não só uma teoria geral de sistemas novo-paradigmática, como também uma teoria novo-paradigmática para os sistemas sociais, exatamente o que nos faltava para fundamentar práticas sistêmicas novo-paradigmáticas desenvolvidas com sistemas sociais.
De fato, esse autor apresenta uma teoria que distinguiu implícita na extensa obra científica de Maturana, anterior a 2000. Estudando detidamente os textos de Maturana, Mateus distinguiu algumas noções teóricas e conceitos sistêmicos, aplicáveis a todo e qualquer sistema e não apenas aos sistemas vivos. Ele explicitou esses princípios teóricos e os apresentou de forma sistemática, como um conjunto articulado que constitui uma teoria sistêmica novo-paradigmática, de 2ª Ordem – e, portanto, transdisciplinar – que o próprio Maturana nunca explicitou como tal e que Mateus intitulou “A Nova Teoria Geral dos Sistemas” (Parte I do livro). Nova porque antes já havia uma Teoria Geral de Sistemas e nova também por ser uma teoria sistêmica novo-paradigmática ou de 2ª Ordem.
Porém, não é apenas isso que o livro contém. Conforme fica explicitado em seu subtítulo, “Dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais”, o autor aborda e responde à questão polêmica – já instalada na área – sobre autopoiese no domínio social humano, ou seja, a questão da identificação dos sistemas sociais – e da sociedade como um todo – como sistemas autopoiéticos.
O autor elaborou a Teoria Geral dos Sistemas Autônomos (Parte II do livro) e assim evidenciou que sistemas sociais não podem ser distinguidos como sistemas autopoiéticos, o que vem contradizer a proposta de Luhmann (1990), de considerar a sociedade como um sistema autopoiético. Com essa Teoria Geral dos Sistemas Autônomos, o autor mostra que tanto os sistemas autopoiéticos (que são apenas os sistemas vivos descritos pela Teoria da Autopoiese de Maturana), quanto os sistemas sociais humanos (definidos como sistemas linguísticos), compartilham algumas características, por pertencerem, ambos, à categoria mais ampla de sistemas autônomos, como podemos ver na Figura 5.
Tomando os sistemas autônomos como uma classe particular de sistemas, o autor caracteriza-os como sistemas dinâmicos, circulares, recursivos e plásticos de 2ª Ordem e propõe como mecanismo explicativo de todos os sistemas autônomos as interações de transformações recíprocas entre seus componentes.
Na Parte III do livro, dedicada ao domínio social humano, o autor distingue duas classes especiais de sistemas sociais humanos: as instituições e os sistemas de interconstituição de 2ª Ordem. De um lado, as instituições, que são sistemas sociais humanos nos quais os indivíduos distinguem um padrão de interações pré-estabelecido, que deve ser seguido por eles próprios. De outro lado, os sistemas de interconstituição de 2ª Ordem, que são sistemas sociais humanos nos quais os indivíduos – conversando sobre suas próprias relações – constroem e reconstroem recursivamente suas próprias formas de interação.
Em outra publicação, intitulada “Não ensine a pescar! Sobre a fundamentação teórica das práticas sistêmicas” (Esteves-Vasconcellos 2014), o mesmo autor, explicita que considera os sistemas / redes sociais que se constituem em torno de uma situação-problema como sistemas autônomos que podem se desenvolver como sistemas de interconstituição de 2ª Ordem. Utilizando-se então dos conceitos de sua Teoria Geral dos Sistemas Autônomos ele justifica, ao final, o título de seu artigo – que se contrapõe à proposta bastante difundida “não dê o peixe, ensine a pescar” – e propõe que se “convide para uma conversação sobre pescaria”.
Atualmente, encontram-se na literatura diversas teorias sobre fenômenos específicos, comumente adjetivadas como sistêmicas, teoria das organizações, teoria da administração, teoria / modelo dos sistemas viáveis, teoria multiparadigmática de sistemas, teoria da comunicação humana, entre outras.
Com relação a esta última, a Teoria da Comunicação Humana, destaco uma situação interessante. Apesar de não se apresentar como uma teoria para os sistemas em geral, é uma teoria para um fenômeno geral, o fenômeno constitutivo de todos os sistemas sociais humanos, definidos como sistemas linguísticos, ou seja, pessoas se comunicando, conversando sobre algo. Portanto, é uma teoria que se aplica à compreensão das comunicações, constitutivas de todos os sistemas sociais humanos.
Vimos que o profissional / cientista sistêmico pode assumir uma visão / epistemologia / postura sistêmica de 1ª Ordem ou de 2ª Ordem. Aqui também, vemos que ele pode escolher – para compreender o funcionamento e os resultados das práticas sistêmicas que desenvolve – entre uma teoria sistêmica geral e/ou teorias sistêmicas específicas. Além disso, pode escolher entre teorias sistêmicas de 1ª Ordem ou de 2ª Ordem, as que forem consistentes com sua epistemologia. Caberá, pois, em cada caso, distinguir se estamos de fato diante de uma teoria sistêmica e, em caso afirmativo, se temos uma teoria sistêmica de 1ª ou de 2ª Ordem.
Prática, uma dimensão do afazer científico
Nessa dimensão do afazer científico, a dimensão da prática, é que podemos distinguir as diversas metodologias sistêmicas ou orientações para a prática sistêmica, atualmente disponíveis no campo sistêmico.
Metodologias costumam ser consideradas como um produto da epistemologia dos cientistas – poderíamos dizer uma implicação da visão de mundo dos cientistas – usadas por estes para atuar de forma consistente com aquilo em que acreditam. A metodologia é um conjunto de orientações para ações concretas a serem realizadas pelo cientista / profissional numa situação.
Entre as palavras que você listou – adjetivadas com sistêmico(a) – é provável que se encontrem as palavras método, técnica, atuação, intervenção, trabalho, instrumento, metodologia, frequentemente tomadas no sentido de prática sistêmica.
Já vimos que todos tendemos a nos comportar de modo coerente com nossas premissas ou pressupostos, ou seja, de acordo com aquilo em que acreditamos. Quando, em determinadas situações, não nos comportamos conforme nossas crenças, experimentamos um desconforto, a chamada dissonância cognitiva. Assim, tendo ultrapassado os pressupostos da ciência tradicional e tendo assumido uma visão sistêmica, o profissional procurará naturalmente realizar práticas sistêmicas, não porque a ciência o esteja exigindo, mas sim como implicação de suas novas crenças. Esse profissional procurará desenvolver, sempre que o contexto o permita, práticas consistentes com sua epistemologia ou visão de mundo sistêmica.
Parece fundamental destacar que uma prática sistêmica é aquela em que se aborda um sistema. A noção de sistema tem sido diferentemente definida pelas teorias sistêmicas originais (de 1ª Ordem) ou por teorias sistêmicas mais recentes, de 2ª Ordem.
Conforme teorias sistêmicas de 1ª Ordem, aceita-se a definição de sistema como um “conjunto de elementos em interação”. Já conforme teorias sistêmicas de 2ª Ordem ou novo-paradigmáticas, distinguir um sistema é propor uma explicação para uma unidade / totalidade previamente distinguida e, ao distinguir um sistema, o observador aponta para as relações fundamentais entre os componentes (a organização do sistema) que, ao serem realizadas, geram uma unidade análoga à totalidade previamente distinguida (Esteves-Vasconcellos 2013).
Atualmente, são bastante numerosas as metodologias que se apresentam como orientações para a realização de práticas sistêmicas, dentre as quais, destaco aquelas não só mais presentes na literatura e nos Congressos Brasileiros de Sistemas – Capítulo Brasileiro da International Society for the Systems Sciences –, mas que também têm o adjetivo sistêmico(a) em seu título, descrevendo-as muito resumidamente, a partir de como têm sido apresentadas por seus proponentes ou pelos que as divulgam.
– Soft Systems Methodology – SSM ou Método dos Sistemas Flexíveis (Peter Checkland 1981; 1999). Metodologia para lidar com cenários problemáticos complexos, onde não existe consenso ou definição clara do problema. Reconhecida nos círculos acadêmicos como metodologia adequada para abordar sistemas soft, para modelagem de processos organizacionais, podendo ser usada tanto para solução de problemas quanto para o gerenciamento de mudanças.
– Systems Dynamics – SD ou Metodologia Dinâmica de Sistemas (Jay W. Forrester 1961; 1968). Referida como uma nova linguagem, uma técnica ou ferramenta de análise, adequada para tratar a complexidade dinâmica das relações circulares.
– Viable Systems Model – VSM ou Método dos Sistemas Viáveis (Stafford Beer 1967; 1979). Referido como modelo ou método para diagnóstico ou entendimento sistêmico sobre a viabilidade das organizações.
– Critical Systems Heuristics – CSH (Werner Ulrich 2005). Definida como um quadro de referência para a prática reflexiva, que pode também servir de instrumento para coproduzir conhecimento e para se atingirem objetivos emancipatórios por parte de pessoas preocupadas – mas não necessariamente envolvidas – com a definição de fatos e valores relevantes.
– Multi-Modal Systems Method – MMSM ou Método Sistêmico Multi-Modal (Donald de Raadt 2000). Apresentado como método que pretende enfrentar a questão da sustentabilidade de uma maneira total e que torne possíveis aplicações práticas em contextos empíricos. Fundamentado em Bertalanffy e em Dooyeweerd (teoria dos múltiplos aspectos da realidade temporal), articula conhecimentos da filosofia, teologia, cibernética, gestão, sociologia e informática (Britto 2011).
– Método Sistêmico ou Método do Pensamento Sistêmico (Andrade, Seleme, Rodrigues e Souto 2006; Andrade, 2014). É considerado por seus autores como um conjunto de passos para desenvolver a linguagem sistêmica, pensar sistemicamente e construir mapas de solução de problemas complexos. Tomam-no como um “roteiro para aplicação do pensamento sistêmico” e adotam o pensamento sistêmico associado ao modelo de Aprendizagem Organizacional de Peter Senge, em “A Quinta Disciplina” (1990).
– Metodologia de Atendimento Sistêmico – MAS (Juliana Gontijo Aun, Maria José Esteves de Vasconcellos, Sônia Vieira Coelho. Vol I 2005, Vol II 2007, Vol III 2010; Esteves de Vasconcellos 2010; 2015). Nessa metodologia sistêmica novo-paradigmática – de que sou coautora – aborda-se o sistema linguístico ou a rede de conversações que se constitui em torno de uma situação-problema distinguida pelos próprios envolvidos na situação, o qual chamamos de “sistema determinado pela situação-problema – SDP”.
Ao distinguirmos o sistema a abordar, distinguimos pessoas comprometidas numa interação linguística, com opiniões divergentes / em posições antagônicas (acusando-se, recriminando-se mutuamente), quanto a algo que está acontecendo. Distinguimos uma forma de relação entre as pessoas que, por discordarem, fazem emergir uma situação-problema. São as posições antagônicas que as estão impedindo de lidarem colaborativamente com a situação. Distinguimos, portanto, um problema relacional e é sobre ele que atuamos – buscando flexibilizar as premissas que estão na base das posições antagônicas -, com o objetivo de que emerja um contexto colaborativo, de autonomia, o qual torne possível a coconstrução de solução para a situação-problema distinguida pelo SDP e a consequente dissolução do problema relacional e do SDP.
A aplicação da Metodologia de Atendimento Sistêmico começa com a identificação de uma situação-problema e tem dois aspectos fundamentais: a forma de Constituição do SDP e a forma de Coordenação dos Encontros Conversacionais do SDP. Tanto na constituição do “sistema determinado pela situação-problema”, como na coordenação das conversações do sistema, a Equipe Sistêmica – constituída de profissionais que assumiram o pensamento sistêmico novo-paradigmático – atua como “expert na criação de contexto” ou “expert em relações” e não como “expert em soluções”, sendo todos os aspectos de sua atuação implicações de sua nova visão de mundo. Assim, enquanto o SDP conversa e se empenha em resolver a “situação-problema nossa” (compartilhada e em que cuja solução todos estão interessados), a Equipe Sistêmica atua para desenvolver formas de relação colaborativa que viabilizem ao próprio sistema coconstruir solução para a “situação-problema nossa”.
A Metodologia de Atendimento Sistêmico tem sido aplicada por Equipes Sistêmicas na abordagem de situações-problema, em contextos de programas / políticas – públicas ou privadas (assistência social, saúde, educação, judiciário, meio ambiente), de situações de conflito, de situações-problema em empresas, de situações-problema onde quer que essas sejam distinguidas.
Trata-se de uma metodologia para a prática sistêmica novo-paradigmática, consistente com os pressupostos da epistemologia sistêmica novo-paradigmática e fundamentada em princípios teóricos também sistêmicos novo-paradigmáticos.
Considerações Finais
Espero que esse texto tenha evidenciado que considero importante tanto distinguirmos as diferentes dimensões do afazer científico, como também termos claro o que, a cada momento, estamos qualificando com o adjetivo sistêmico – se epistemologia, teoria(s) ou prática(s). E que ele tenha também evidenciado que considero fundamental diferenciarmos entre epistemologia, teoria(s), prática(s) de 1ª Ordem e de 2ª Ordem, tendo sempre presente o que estamos concebendo como um sistema, concepção de onde decorre necessariamente a qualidade de sistêmico.
Essa minha compreensão sobre os usos do adjetivo sistêmico me faz estar atenta e distinguir situações em que, a meu ver, esse adjetivo não está sendo consistentemente utilizado e, a título de exemplos, aponto adiante algumas delas.
A expressão análise sistêmica, muito frequentemente usada, junta duas palavras de sentido contrário: a análise é uma operação típica da ciência tradicional que consiste em separar as partes de um todo complexo. Há muito a ciência vem procedendo à análise e à atomização e, em busca do elemento essencial de que o universo está construído, a física, por exemplo, focaliza sucessivamente a molécula, o átomo, o núcleo e os elétrons, os quarks. A uma operação de análise não me parece aplicável o adjetivo sistêmico.
Outra expressão que se tem encontrado com frequência é abordagem relacional sistêmica. Podemos distinguir nessa expressão uma redundância, se considerarmos que a abordagem sistêmica se refere a colocar-se o foco nas relações. Então, relacional pode ser considerado como um adjetivo equivalente ao adjetivo sistêmico e não precisamos utilizar os dois juntos.
Frequentemente temos ouvido falar também de aplicações do pensamento sistêmico. Como vimos, pensamento é o mesmo que epistemologia e, portanto, pode ter implicações, mas não aplicações.
Recentemente, encontrei também um autor de um artigo dizendo que a seguir apresentaria as “metodologias mais conhecidas para pensar e agir sistemicamente em determinada situação”. Como vimos, uma metodologia sistêmica, como um conjunto de orientações / propostas para a realização de uma prática sistêmica, se constitui como uma das dimensões do afazer científico, enquanto o pensamento sistêmico se constitui como outra dimensão desse afazer, a epistemologia. A meu ver, uma forma de pensar não emerge necessariamente da aplicação de uma metodologia e nem a emergência do pensar sistêmico seria um objetivo a ser alcançado com essa aplicação.
Também costumam acontecer confusões entre os conceitos de teoria e metodologia, que levam a afirmações, tais como a de que “a Teoria X é uma metodologia adequada para transformar organizações”. De novo temos duas diferentes dimensões do afazer científico que não estão sendo distinguidas uma da outra.
Outra adjetivação, contra a qual já tenho me manifestado, é a que se refere a “prática individual sistêmica” (Esteves de Vasconcellos 2003). Sendo sistêmicas as práticas em que o profissional aborda um sistema e focaliza as relações entre seus componentes – e não um indivíduo isoladamente – não cabe falar-se de nenhuma “prática individual sistêmica”. Espero que neste texto tenha ficado claro que uma coisa é a epistemologia / visão de mundo do profissional e outra coisa é a prática que ele esteja realizando. Ao atender um indivíduo sozinho, o profissional estará realizando uma prática individual e não uma prática sistêmica. Nesse caso, ele só conta com a narrativa desse indivíduo sobre o que acontece com ele nos sistemas de que ele participa. Isso, aliás, acontece em todas as práticas individuais, nas quais profissionais se fundamentam em diferentes teorias, não sistêmicas. Não estou dizendo que não haja lugar para as abordagens individuais. Só estou dizendo que não considero adequado chamar-se de sistêmica qualquer prática realizada com um único indivíduo, ainda que seja desenvolvida por um profissional que tenha assumido a visão sistêmica, por isso chamado de profissional sistêmico. Ou seja, não é pelo fato de o profissional ter adotado o pensamento sistêmico que serão sistêmicas – abordando sistemas – todas as práticas que ele venha a desenvolver.
Essas mesmas considerações se aplicam à prática denominada de “Constelações Sistêmicas”. Essa prática – como de resto as técnicas psicodramáticas quando usadas com um indivíduo – aborda a narrativa de um indivíduo sobre as relações que ele mantém na família, no trabalho ou em outros contextos de que ele participe. E as pessoas que simulam o pai, a mãe ou o gerente do constelado fazem-no a partir da narrativa deste e, também, claro, das suas próprias experiências de vida, contidas em sua estrutura relacional. Nas práticas sistêmicas – que também podem usar recursos psicodramáticos – o profissional que as coordena conta com a presença e as narrativas dos diversos participantes daquele sistema linguístico e pode observar diretamente as relações entre eles. Além do mais, parece-me que o autor das Constelações se utilizou bastante de conceitos próprios do domínio linguístico da Filosofia e mesmo do domínio linguístico da Religião. Mas preciso deixar claro que o fato de eu fazer essas distinções não significa que eu não admita que a prática das Constelações possa ser benéfica para as pessoas que a ela recorrem. Só não parece adequado chamá-la de sistêmica e nem tentar associá-la a práticas sistêmicas que se desenvolvem no domínio linguístico da Ciência.
Finalizando, espero ter realizado minha proposta de desencadear reflexões sobre como cada um de nós pode contribuir para o melhor desenvolvimento do domínio linguístico que constituímos e no qual nos movemos, o do pensamento sistêmico e de suas implicações.
Referências
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¹ Esse texto está publicado como o Cap 7 do livro Sistemas Eletroenergéticos no ambiente 5,0 e seguintes, na perspectiva e orientação da sustentabilidade e resiliência, organizado por Eduardo Neri (2022). Uma forma anterior desse texto está publicada, com o título “Usos contemporâneos do adjetivo ‘sistêmico’”. In: Mendes, J. A. A. e Bucher-Maluscke, J. N. F. (Orgs). Perspectiva Sistêmica e Práticas em Psicologia. Temas e Campos de Atuação. Editora CRV, 2020.
² Consultora, Professora e Palestrante: Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático e Metodologia de Atendimento Sistêmico. Autora de: Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência (2002, 11ª edição 2018); Systems Thinking. The new paradigma of Science (2020); Terapia Familiar Sistêmica. Bases cibernéticas (1995). Cocriadora da Metodologia de Atendimento Sistêmico para solução de situação-problema, pelos próprios envolvidos nela, em contexto colaborativo, de autonomia e coautora da obra Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais (Vol I 2005; Vol II 2007; Vol III 2010). Coautora de: Curso de Engenharia de Energia. Uma iniciativa audaciosa de ensino, 2018. Cocriadora e Coordenadora de Cursos de Pós-Graduação em Metodologia de Atendimento Sistêmico, preparando profissionais para práticas sociais inovadoras em diferentes contextos. Professora convidada em diversas Pós-graduações. Terapeuta de Família e Casal. Professora na UFMG (1968-1992). Sócia fundadora da EquipSIS – Equipe Sistêmica, Belo Horizonte (1993-2010). Artigos publicados em coletâneas e em periódicos nacionais e internacionais.
³ Em sua Teoria da Autopoiese, Maturana e Varela (1987/1983) utilizam o conceito de estrutura do sistema vivo, por meio da qual este se mantém em acoplamento estrutural com o meio, mantendo-se vivo. Quando abordamos seres humanos, ou seja, seres vivos que vivem na linguagem, tem-se feito uma extensão desse conceito, falando-se de uma estrutura relacional (Esteves-Vasconcellos 2013; Esteves de Vasconcellos 2018/2002), constituída pelas características humanas – dentre as quais podem-se destacar suas premissas – que viabilizam o acoplamento do ser humano com o meio social, constituído de outros seres humanos.
⁴ Em sua Teoria da Autopoiese, Maturana e Varela (1987/1983) utilizam o conceito de estrutura do sistema vivo, por meio da qual este se mantém em acoplamento estrutural com o meio, mantendo-se vivo. Quando abordamos seres humanos, ou seja, seres vivos que vivem na linguagem, tem-se feito uma extensão desse conceito, falando-se de uma estrutura relacional (Esteves-Vasconcellos 2013; Esteves de Vasconcellos 2018/2002), constituída pelas características humanas – dentre as quais podem-se destacar suas premissas – que viabilizam o acoplamento do ser humano com o meio social, constituído de outros seres humanos.
⁵ Importante ressaltar que tomo apenas um dos sentidos do termo paradigma, o de crenças e valores dos cientistas, como equivalente de um dos sentidos de epistemologia, o de visão ou concepção de mundo implícita na atividade científica.
⁶ Interessante destacar que Capra (1996, p. 50) também fala de novo paradigma na ciência, porém destaca apenas “dois grandes fios” do pensamento sistêmico, apresentando-o como um pensamento “contextual” e como um pensamento “processual”. “Quanto à terceira dimensão do pensamento sistêmico novo-paradigmático, ele não parece ter assumido que a objetividade é impossível e que não existe a realidade independente de um observador” (Esteves de Vasconcellos 2018/2002, p. 157).